PUBLICADO: 12-FEB-2024
LitioBateria

O paradoxo tóxico da energia ‘verde’

À medida que países de todo o mundo chegam a um acordo sobre as metas para reduzir o uso de combustíveis fósseis em um esforço para desacelerar o aquecimento global, uma nova indústria de energias renováveis está prosperando, impulsionada em grande parte por veículos elétricos e metas para a substituição do carvão, petróleo e gás por energia solar e outras fontes de energia. Mas essa chamada revolução energética “verde” tem um custo suportado principalmente pelas comunidades distantes dos países que estão aproveitando os benefícios do boom das energias renováveis.

Painéis solares e baterias para placas solares e veículos elétricos requerem metais encontrados em vários países, nem todos de mineração tradicional. A mineração é um negócio sujo com um enorme impacto ambiental, que muitas vezes ocorre em áreas remotas, habitadas por povos indígenas ou por outros povos tradicionais. E embora a energia para a qual contribuem possa ser renovável, os próprios minerais não o são, levando alguns críticos a argumentar que o boom das energias renováveis está simplesmente trocando uma forma insustentável de produção por outra.

Os pesquisadores e a indústria estão tentando compensar, apelando à mais reciclagem e à reutilização de minerais, bem como a tecnologias que dependam de materiais mais facilmente disponíveis e com menores impactos ambientais. Mas esses esforços são superados pela demanda de minerais como o lítio, considerado “crítico” para a transição de combustíveis fósseis para energias renováveis.

Lítio

Especialistas em ética também estão divididos, com alguns argumentando que a urgência do risco de um aquecimento descontrolado exige compensações enquanto a tecnologia de energia renovável se atualiza, ao mesmo tempo em que outros pedem uma redução drástica do uso de energia para diminuir a necessidade de mais mineração.

Nos países da América Latina, incluindo Chile, Argentina, Bolívia, México e Peru, os governos procuram lucrar com a demanda por minerais que não são extraídos tradicionalmente na região. Movem-se em um tabuleiro de xadrez econômico dominado pelos Estados Unidos e China, concorrentes na corrida para garantir minerais estratégicos, e pela Rússia, cuja guerra contra a Ucrânia interrompeu o fornecimento de energia à Europa, empurrando a União Europeia para uma transição mais rápida.

E no meio disso tudo estão as comunidades locais, muitas delas indígenas, onde os moradores se preocupam com os danos às suas terras, com a drenagem de seus suprimentos de água e com a destruição de montanhas que consideram sagradas. Os especialistas dizem que os desafios iminentes exigem uma melhor governança tanto dos países ricos em recursos quanto das nações que estão se beneficiando mais rapidamente da transição energética. Mas ainda há muito a ser feito para nivelar o campo de jogo — se, de fato, isso puder ser feito.

montañas

Transição energética ligada à poluição

Transición energética

Para Marcos Orellana, tanto a mudança climática quanto a contaminação ambiental são problemas de direitos humanos, e uma transição justa dos combustíveis fósseis para outras fontes de energia exige que sejam tratados em conjunto. Orellana, relator especial das Nações Unidas sobre as implicações para os direitos humanos da gestão e do descarte ambientalmente correto de substâncias e resíduos perigosos, apresentou a questão em um relatório a esse órgão multinacional em setembro, na 54ª sessão da Comissão de Direitos Humanos da ONU.

“O argumento de que estamos diante de uma crise climática global e, portanto, são necessárias tecnologias para lidar com essa crise, independentemente do custo ambiental ou da contaminação que possam gerar, é uma narrativa falsa”, disse Orellana a InquireFirst, “porque não podemos resolver o problema da mudança climática agravando os problemas tóxicos já enfrentados pelo planeta.”

Em seu relatório, Orellana reconhece que “as mudanças climáticas representam uma ameaça existencial à humanidade e ao gozo efetivo dos direitos humanos.” Porém, observa o relatório, na corrida para “reduzir as emissões de gases de efeito de estufa e remover o carbono da atmosfera”, os países e as empresas estão recorrendo a tecnologias que podem exacerbar a poluição. Entre os exemplos estão os resíduos da mineração de novos minerais "estratégicos", a produção de baterias de íons de lítio, sem meios adequados de reciclagem e uma nova ênfase na energia nuclear, que produz barras de combustível usadas que permanecem radioativas.

A mineração, em particular, "é uma das indústrias mais contaminantes do mundo", disse ele a InquireFirst, afetando os direitos humanos protegidos por tratados internacionais, incluindo os direitos à vida, à saúde e a um meio ambiente saudável. “Esses impactos recaem frequentemente de forma particularmente pesada sobre grupos e povos vulneráveis, como os povos indígenas, agravando tanto as injustiças ambientais quanto a violência ambiental."

A sedução do ‘triângulo do lítio’

Um automóvel convencional contém cerca de 34 quilos de metal, principalmente cobre e manganês. Um veículo elétrico contém mais de seis vezes essa quantidade e uma variedade maior — grafite, cobre, níquel, manganês, lítio, cobalto e uma pequena quantidade de minerais conhecidos como terras raras. Como a demanda por veículos elétricos continua a crescer, serão necessárias mais minas — maiores e mais profundas —, muitas delas em países onde a mineração já é uma fonte de conflito.

QUAIS MINERAIS COMPÕEM A BATERIA DE LÍTIO?
Gramas e porcentagem do total

*Outros inclui: Manganês: 10 gramas (5,4%); Cobalto: 8 gramas (4,3%); Lítio, 6 gramas (3,2%) e Ferro: 5 gramas (2,7%)


Na América Latina, a transição energética colocou o lítio em evidência, o mineral mais leve e essencial para a fabricação de baterias recarregáveis que alimentam tudo, de telefones celulares a veículos elétricos, usadas para armazenar energia produzida por redes solares. Até recentemente, havia pouca demanda por lítio. Mas a produção aumentou drasticamente na última década e o mineral está no centro dos jogos de poder geopolítico que atingem profundamente a América do Sul.

Em 1995, a produção global de lítio era de 9.500 toneladas e os Estados Unidos eram os principais produtores do mineral, usado principalmente para fortalecer vidros e cerâmicas. Em 2010, entretanto, a produção global dobrou e o Chile havia se tornado o maior produtor mundial. Na década seguinte, a produção de lítio quadruplicou, chegando a 106.000 toneladas em 2021.

Fonte: www.weforum.org

Em seu relatório de 2023 sobre o lítio, o Serviço Geológico dos EUA anunciou uma estimativa de 98 milhões de toneladas de recursos de lítio no mundo — a quantidade de lítio que se sabe existir na crosta terrestre — e uma estimativa de 22 milhões de toneladas em "reservas", a quantia que poderia ser recuperada economicamente, usando a tecnologia atualmente disponível.


Recursos de lítio

(milhões de toneladas)

TOTAL - 97.28


*Em meados de 2023, a Bolívia anunciou um acréscimo de 2 milhões de toneladas em um total de 23 milhões

Fonte: Serviço Geológico dos Estados Unidos, 2022



O lítio pode ocorrer na salmoura das salinas, como nas do Chile, Argentina ou Bolívia, ou em rochas duras, como nos depósitos do Peru e da Austrália. A China possui os dois tipos de depósitos. As diferentes formações requerem distintas técnicas de mineração e implicam diferentes custos ambientais.

Nas salinas, a salmoura é bombeada do subsolo para enormes lagoas, onde o vento e o sol evaporam a água, deixando o lítio para ser extraído e processado. Essa é a forma de mineração menos dispendiosa, mas a que mais consome água, utilizando cerca de 528.000 galões [2 milhões de litros] de água por tonelada métrica de lítio. Um processo conhecido como extração direta de lítio poderia reduzir o uso de água, mas ainda não foi testado em escala comercial.

A extração de lítio de depósitos de rocha dura requer menos água, mas desloca comunidades, deixa cortes gigantescos na terra, aplaina montanhas que podem ser sagradas para os povos indígenas da proximidade e leva à poluição da terra e da água. Alguns especialistas sugerem que as fontes geotérmicas poderiam produzir lítio com um menor impacto ambiental e climático, mas até o momento essas reservas representam apenas uma pequena porcentagem dos depósitos mundiais.

Cerca de metade dos depósitos de lítio conhecidos no mundo se encontram nas salinas do “triângulo do lítio”, uma região alta e árida que abrange as fronteiras do Chile, Argentina e Bolívia. O Chile lidera o mundo em reservas, com 9,3 milhões de toneladas, seguido pela Austrália, com 6,2 milhões; Argentina, com 2,7 milhões; e China, com 2 milhões, segundo o Serviço Geológico dos EUA. A Bolívia possui cerca de 23 milhões de toneladas de recursos de lítio, mas ainda não produz comercialmente.


Reservas globais de lítio

(milhões de toneladas)

TOTAL - 26


*A Bolívia não possui reservas certificadas internacionalmente

Fonte: Serviço Geológico dos Estados Unidos, 2022




"Triângulo de lítio"
triángulo del litio

SALAR DE UYUNI

SALAR DE OLAROZ

SALINAS GRANDES

SALAR DE ATACAMA

SALINAS DEL RINCÓN

SALINAS DE ARIZARO

POCITOS


O Chile supera a Austrália em reservas, mas caiu para o segundo lugar em produção. Vários países têm falado em desenvolver a capacidade de fabricar produtos para a indústria de energias renováveis, agregando, assim, valor às matérias-primas extraídas. Até o momento, porém, apenas a China progrediu nessa área, embora os Estados Unidos estejam implementando incentivos para reduzir a dependência da mineração e do processamento chineses.


Produção global de minas de lítio

(toneladas)


Fonte: Serviço Geológico dos Estados Unidos, 2022



Os especialistas alertam, contudo, que as previsões da demanda futura por minerais de transição energética podem mudar drasticamente com as transformações tecnológicas. Por exemplo, uma projeção vê a demanda por lítio aumentando a um fator de 13 até 2040, enquanto outra prevê um crescimento da demanda a um fator de 51. Se outras substâncias substituírem o lítio, os projetos de mineração que estão sendo elaborados atualmente poderão se tornar obsoletos antes mesmo de iniciarem a produção.

É possível uma “transição justa”?

Mas o que pode ser feito para garantir uma “transição justa” em locais onde a mineração de lítio já está em curso ou prestes a começar?

A maioria das regiões da América Latina com as maiores reservas é de terras áridas, habitadas principalmente por comunidades indígenas e outras comunidades agrícolas tradicionais que já enfrentam problemas de escassez de água. Na Argentina, as comunidades indígenas da região de mineração de lítio de Juanjuy organizaram um protesto em agosto contra as mudanças regulatórias que, segundo elas, facilitariam a expropriação de suas terras pelo governo, muitas das quais carecem de título legal. No Chile, as comunidades estão divididas em relação à mineração de lítio no deserto do Atacama, no norte do país. O mesmo acontece no Peru, onde o governo sinalizou sua intenção de apoiar a mineração de lítio em rochas duras, mas onde as comunidades têm pouca informação.

Nas últimas décadas, as comunidades latino-americanas têm-se manifestado cada vez mais contra todos os tipos de mineração, mas as empresas e os governos geralmente dividem e conquistam, angariando apoio com a oferta de empregos e, em seguida, colocando os apoiadores contra os oponentes nas comunidades.

A legislação destinada a proteger os interesses das comunidades, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, exige que os povos indígenas e tribais deem seu "consentimento livre, prévio e informado", antes do avanço dos projetos de desenvolvimento em suas terras, incluindo a mineração. Na prática, entretanto, as comunidades geralmente não têm poder de veto e, em alguns países, incluindo o Peru, o processo de consentimento ocorre somente após a fase de exploração, quando é improvável a interrupção pelos governos de um projeto promissor de geração de receita.

O boom do lítio acentua a urgência em relação às questões sobre a possibilidade de explorar a mineração e, se os países optarem por avançar, como fazê-lo para não colocar as comunidades locais em uma desvantagem ainda maior.

Para Lisa Sachs, diretora do Centro Columbia sobre Investimento Sustentável da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, a contradição implícita no uso da mineração “suja” para fornecer energia “limpa” implica um ato de equilíbrio global.

"Isso se resume inevitavelmente em compensações, porque não existe um jeito de produzir os materiais de que precisamos para a nossa economia, sem causar algum impacto no planeta e [sem] mineração", diz Sachs. "Portanto, mesmo no melhor cenário possível, do qual estamos longe, a extração e o uso de recursos exigem compensações inerentes."

A pergunta é como minimizar o custo para as comunidades vulneráveis, diz ela. E isso não significa se contentar com os negócios como de costume, porque o campo está mudando rapidamente. "É dinâmico por natureza", diz Sachs, "porque as tecnologias que temos e o conhecimento sobre como fazer as coisas melhor estão em constante evolução."

"Fazer as coisas de uma melhor forma" requer ação tanto dos países onde a demanda por lítio é maior, incluindo os Estados Unidos, a China e a União Europeia, quanto das nações latino-americanas com reservas de lítio, diz Sachs. Ela vê o plano da União Europeia para uma economia circular — que destaca a redução de resíduos — como um passo positivo.

"Deveríamos desenvolver mais circularidade na economia [inclusive] nos produtos de uso final [e] no próprio processo de mineração, porque ele gera muitos resíduos que ainda contêm recursos valiosos", diz ela.

É provável que também sejam desenvolvidos substitutos para alguns desses materiais, acrescenta ela – os cientistas já estão experimentando alternativas à tecnologia de íons de lítio para baterias, com o sódio se mostrando o mais promissor até o momento.

"Todas essas coisas deveriam estar sobre a mesa e fazer parte dessa agenda voltada a diminuir a demanda para podermos mitigar ou reduzir a compensação, mesmo que alguma compensação seja inevitável", diz Sachs. Mas essa compensação deveria ser acompanhada de benefícios para os países que produzem minerais essenciais, acrescenta ela.

A região enfrenta ‘novos desafios’

Nuevos desafíos

"A transição energética é uma agenda enorme e deveria ser acompanhada por uma agenda de desenvolvimento enorme", diz Sachs. "Como vamos financiar isso? Como vamos garantir que as comunidades mais pobres sejam beneficiadas sem ser prejudicadas de forma desproporcional?"

Essa questão é particularmente complicada, pois muitos países onde são encontrados minerais "estratégicos" já dependem economicamente da mineração e muitos têm um histórico de extração de recursos bastante tenso. Para Anabel Marín, pesquisadora do Instituto de Estudos de Desenvolvimento em Brighton, na Inglaterra, a busca por uma transição energética justa oferece uma oportunidade de fazer as coisas de um jeito diferente.

"Temos novos tipos de desafios, mas esperamos também novas oportunidades", diz Marín. "Vejo a governança como um processo que [envolve] não apenas a ação dos governos, mas uma ação coordenada entre empresas, governos e sociedade civil."

Uma maior participação na tomada de decisões é fundamental, mas dar aos grupos marginalizados um lugar à mesa não é suficiente, diz ela. As exigências feitas pelas comunidades afetadas pela mineração nas últimas décadas devem levar a mudanças nas políticas.

A participação é necessária “não apenas na tomada de decisões, mas também no conhecimento e na inovação não só da tecnologia, mas também das políticas”, diz ela. “A chave para a mudança é o conhecimento e a inovação – precisamos fazer as coisas de uma forma diferente.”

Historicamente, na América do Sul, “as pessoas que chegam ao poder perguntam como outros países fizeram essas coisas”, acrescenta Marín, “mas estes são novos desafios e precisamos experimentar. Precisamos de inovações políticas, e não é possível fazer inovações políticas sem experimentação.”

Para Orellano, relator especial da ONU, é crucial que os países combinem políticas de redução das emissões de gases de efeito de estufa com políticas para reduzir a poluição e restaurar os ecossistemas. Essas questões seriam apresentadas por ele durante a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, realizada em Dubai no início de dezembro.

“Esperamos que isso influencie as políticas nacionais adotadas pelos governos”, diz ele, especialmente em três áreas. Uma política específica que ele gostaria de ver os países adotarem é a proibição da mineração em áreas protegidas. Outra é a ratificação e implementação do Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe, também conhecido como Acordo de Escazú, que exige que os países garantam que as comunidades afetadas pelas indústrias extrativistas tenham acesso oportuno às informações, participem significativamente das decisões que as afetam e tenham acesso à justiça, se os seus direitos forem violados — uma disposição fundamental, considerando que a América Latina é uma das regiões mais perigosas do mundo para as pessoas que defendem o meio ambiente e seus territórios.

Uma terceira área política, diz ele, é a regulamentação de contaminantes e resíduos associados à transição energética, acrescentando que os países não devem relaxar as salvaguardas ambientais e sociais apenas porque os minerais são necessários para combater a mudança climática.

"As indústrias extrativistas afetaram seriamente o meio ambiente e o gozo efetivo dos direitos humanos em todo o mundo", diz ele. "Minerais como o lítio são importantes para lidar com a crise climática, mas isso não justifica repetir os erros do passado e agravar o envenenamento causado pela poluição das indústrias extrativistas."