Na Bolívia, após 15 anos falando sobre o lítio, há pouca produção e nenhuma industrialização.
A beleza do Salar de Uyuni é indescritível, com caminhos sem começo nem fim que se perdem no horizonte. A planície de 12.000 quilômetros quadrados localizada no departamento de Potosí, na Bolívia, captura o olhar pela impressionante fusão do azul celeste e o branco puro da superfície. Reconhecido como uma das maravilhas naturais do planeta, o Salar de Uyuni não se destaca apenas por sua beleza, mas também por abrigar a maior reserva mundial de lítio, um recurso natural fundamental para a transição para a energia verde. Por isso, além da sua espetacularidade natural, o Salar gerou um turbilhão de sonhos e possibilidades à Bolívia.
O lítio é visto como um pilar do desenvolvimento econômico na Bolívia, despertando enormes expectativas. Não se trata somente de extrair matéria-prima, mas de promover uma indústria de baterias desse metal cujas propriedades de armazenamento são únicas e um processo de industrialização iniciado há 15 anos tem sido carregado de grandes esperanças. No entanto, para alguns como Efraín Quispe, Jiliri Mallku do Conselho de Governo Autônomo Indígena da Marka Tahua Aranzaya Maranzaya, essas ilusões viraram frustrações. “Totalmente desiludidos, estamos nesse nível”, conclui em tom de resignação.
Porém, a visão do presidente da Bolívia, Luis Arce Catacora, é diferente e ele classificou a indústria do lítio como um “horizonte estratégico” para a economia boliviana e prometeu que “até o primeiro trimestre de 2025, a Bolívia já deve estar exportando baterias de lítio com matéria-prima nacional”. O prazo se aproxima e a missão parece fadada ao fracasso.
Uma dança de dólares
Passaram-se 15 anos desde que o Governo Nacional do Movimento ao Socialismo (MAS) começou a falar sobre a exploração do lítio para industrialização, e ainda não estabeleceu as bases da produção industrial, apesar de ter as maiores reservas de lítio do mundo, com 23 milhões de toneladas apenas nos salares de Uyuni (21 milhões) e Coipasa (2 milhões).
Não há nenhuma produção de lítio como matéria-prima em escala industrial e muito menos uma fábrica de baterias de lítio para automóveis e telefones celulares, as quais não saíram da fase piloto; porém, a dança de milhões de dólares em torno deste produto por parte do Governo não para.
Assim, a inauguração da Fábrica de Carbonato de Lítio de Llipi no Salar de Uyuni foi anunciada para o dia 6 de agosto de 2023, algo que só ocorreu em 15 de dezembro de 2023, com uma capacidade de produção de 15.000 toneladas por ano, que, se vendida por 40.000 dólares a tonelada, permitiriam ao país o ingresso de 600 milhões de dólares, segundo cálculos do vice-ministro de Energias Alternativas, Álvaro Arnez. No entanto, isso continua em suspenso.
Mas esses números vão além. Como resultado dos quatro contratos assinados pelo Governo Nacional com três empresas chinesas e uma russa em janeiro e junho deste ano, as projeções para 2025 são de produzir mais de 100.000 toneladas, incluindo as da fábrica de Llipi, pertencente à empresa estatal Yacimientos del Litio Bolivianos (YLB), e pagar aos cofres do Estado US$ 9,6 bilhões a partir de 2026, sustenta o vice-ministro de Exploração e Aproveitamento de Hidrocarbonetos, Raúl Mayta, em declarações à ABI.
Embora ainda não tenham entrado nesta dança de dólares os milhões que poderiam ingressar no país pela industrialização, isso despertou uma enorme expectativa nas pessoas que vivem nas imediações do Salar de Uyuni, pois acreditavam que essas fábricas poderiam ser distribuídas em diferentes comunidades para que em algumas produzissem as carcaças de baterias, por exemplo, e, em outras, alguns componentes de baterias. “Tinham pensado nesse nível”, afirma Quispe, que reconhece que isso teve “um pouco de influência do Governo de Evo Morales”.
“Já são 15 anos com um capital atribuído de pouco mais de 1 bilhão de dólares, e não há nem matéria-prima (para industrialização)”, afirma Pablo Villegas, especialista do Centro de Documentação e Informação da Bolívia (CEDIB), que monitora a exploração do lítio, esclarecendo que, embora o país “produza matéria-prima, ainda é um produto da fase piloto”.
Atualmente, a fase piloto da produção de lítio é feita sob o sistema de evaporação e a YLB aplicará esse modelo na Fábrica de Carbonato de Lítio Llipi, localizada no Salar de Uyuni, mas, com contratos assinados pelo Governo nacional e três empresas chinesas e uma russa, a obtenção da matéria-prima será mediante a Extração Direta do Lítio (EDL), detalha Lino Barahona, chefe de Operações da YLB.
Distante da industrialização
Em todo processo, o mais crítico é a industrialização, sustenta Villegas, que afirma que o país não avançou na inovação tecnológica e no registo de patentes para a produção de baterias de lítio, que anualmente são milhares no mundo.
E se na hora de industrializar o país não consegue obter suas próprias patentes, alerta, será obrigado “a comprar patentes e acabará pagando pela propriedade intelectual de outros e terminará trabalhando para o proprietário da patente”.
Em teoria, a Bolívia terá mais de 100.000 toneladas de lítio por ano a partir de 2025, com as quais entrará na fase de industrialização e/ou produção de baterias, segundo a proposta do Governo. Porém, o especialista do CEDIB observa que para produzir uma bateria não é necessário apenas lítio, que representa 3,5% do produto final, mas também outros tipos de minerais e elementos tecnológicos.
Detalha serem necessários níquel e cobre, por exemplo, que podem estar disponíveis no país, mas que é preciso desenvolver sua exploração mineradora; isso poderia levar de cinco a dez anos. As baterias também são compostas de cobalto e grafite, que não estão disponíveis no país e que teriam de ser importadas. O mais preocupante é que a Bolívia não produz semicondutores de energia, que são cérebros eletrônicos em microchips.
“A exploração do lítio, até o momento, com base nas propostas do Estado, já é um fracasso, falando da exploração do lítio e da industrialização. Estamos nos prazos da fase piloto que já expiraram há anos. Estes anos significam, portanto, milhões e milhões de perdas em dinheiro”, afirma Jiliri Mallku, um dos líderes do Conselho de Governo Autônomo Indígena de Marka Tahua Aranzaya Maranzaya.
Com isso também se dissipam as esperanças de criar fontes de emprego para as pessoas do lugar, tal como lhes haviam prometido. “Teremos a empresa do lítio, vamos contratar seus filhos, vamos capacitar seus filhos, eles vão se tornar profissionais”, lembra Quispe sobre as palavras do Governo por meio da propaganda, “mas isso é uma grande farsa”.
Contratos obscuros com o estrangeiro
O governo do presidente Luis Arce, do Movimento Ao Socialismo (MAS), por meio da YLB, assinou neste ano quatro contratos para a instalação de fábricas que produzirão carbonato de lítio para baterias com 99,5% de pureza. O primeiro contrato foi assinado no dia 20 de janeiro com a empresa chinesa CATL BRUNP & CMOC (CBC), que instalará duas fábricas nos salares de Uyuni e Coipasa; cada uma com capacidade de produção de 25.000 toneladas anuais.
Em seguida, em 29 de junho, a YLB assinou contratos com a russa Uranium Group One e a chinesa Citic Guoan para a instalação de duas fábricas que produzirão 25.000 toneladas anuais de carbonato de lítio para bateria com 99,5% cada uma. No total, as três empresas investirão 2,8 bilhões de dólares nas quatro fábricas.
No entanto, estes contratos são questionados pela população porque o Governo não revelou em que condições os mesmos foram assinados; simplesmente, a YLB emitiu um comunicado dizendo que “a implementação de fábricas industriais de carbonato de lítio (estão) sob o modelo de negócio soberano”.
“O senhor Arce é uma pessoa que, ou seu Governo, se caracteriza por se afastar cada vez mais da verdade e da transparência”, afirma a senadora por Potosí do partido de oposição Comunidade Cidadã (CC), Daly Cristina Santa María.
Por sua vez, Quispe lembra que, como povos indígenas, em cujo território estão as reservas de lítio, “solicitamos audiências às autoridades estaduais, e até o momento não nos receberam”, para falar sobre todas as questões relacionadas à exploração deste mineral.
Por sua vez, Villegas garante que os quatro contratos são apenas para produzir matéria-prima e que em nenhum momento “o Governo disse estar obrigando a empresa a instalar a fábrica de baterias aqui”.
Temor ante o impacto ambiental
Sem que a exploração de lítio como matéria-prima e sua posterior fabricação para baterias de automóveis e celulares tenha entrado em sua fase industrial até o momento, os moradores das proximidades dos salares de Uyuni e Coipasa já começam a manifestar seus temores.
O Jiliri Mallku do Conselho de Governo Autônomo Indígena de Marka Tahua Aranzaya Maranzaya, Efraín Quispe, diz que nessas regiões “não há mais precipitações fluviais, praticamente em todos os lugares vamos carecer de água. Já estamos sofrendo”.
Enquanto Víctor Copa, ex-jilaqata [ex-autoridade da comunidade andina] Mallku do município de Salinas de Garci Mendoza (Oruro), afirma que para regenerar os campos de cultivo e pastagens agora é preciso perfurar poços para extrair água, nos últimos dez anos as chuvas têm sido mais escassas do que antes, destaca.
Em uma nota publicada pelo portal chilesustentable.net, a professora do Departamento de Engenharia Química e Processos de Minerais da Universidade de Antofagasta (UA), Ingrid Garcés, que conhece bem o impacto da indústria do lítio em seu país, afirmou que “para produzir uma tonelada de lítio, são evaporados 2 milhões de litros de água dos poços, ou seja, 2 mil toneladas de água que não podem circular novamente”.
Então, nas proximidades do Salar de Uyuni, onde será obtida essa quantidade de água? O prefeito de Colcha-K (Potosí), César Alí, acredita que das fontes hídricas localizadas em Puerto Chubica, Villa Candelaria, Colcha K, embora a população já tenha manifestado sua recusa “para cuidar de sua subsistência”. No entanto, a YLB conseguiu persuadir os vizinhos da comunidade de Río Grande, no município de Colcha K, onde se encontra o foco “principal de água” e onde já foram perfurados poços, para abastecer a Fábrica de Água de Llipi em troca de algumas fontes de emprego para os vizinhos daquela população.
O especialista do CEDIB, Pablo Villegas, afirma que quem pode responder quanta água será necessária para explorar o lítio é o estudo de impacto ambiental, mas que infelizmente o Governo não o torna público no país. “O dano ambiental pode ser muito grande, realmente muito grande. Pode destruir as terras e até contaminar a população”, alerta.
Dessa forma, o Salar de Uyuni, uma maravilha natural da Bolívia, e seus habitantes parecem viver numa encruzilhada entre o potencial turístico e a exploração dos seus recursos de lítio. Embora a Bolívia não seja um dos destinos turísticos mais populares, os números mostram uma paisagem em evolução. Segundo o Instituto Nacional de Estatística da Bolívia, após registrar 180.000 turistas em 2022, o turismo receptivo no país experimentou um significativo crescimento de 35% em 2023, com a expectativa de atingir cerca de 700.000 turistas até o final deste ano. Este fato parece justificar as declarações de Efraín Quispe, dirigente local, que diz que a comunidade prefere apostar na “industrialização” da indústria turística, em vez de depender apenas da extração de lítio, embora reconheça com alguma inquietação que a exploração desse recurso será inevitável.
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