CHILE

O desmatamento subaquático que mobiliza pescadores e cientistas


Autor: Cristian Ascencio Ojeda

A febre pelo huiro trouxe consigo um mercado negro em que coletores clandestinos entram nas florestas subaquáticas para cortar a alga e vendê-la de forma ilegal. Essa superexploração das florestas causa danos a todo o ecossistema, pois são o “berçário do mar”. Pescadores e cientistas buscam maneiras de extrair o recurso de forma sustentável, enquanto resistem a futuros perigos, como a mudança climática. Superalgas cultivadas em laboratório poderiam ser parte da solução.

“A ilha não te deixa sozinho”, diz Marcos Callejas, sentado em um fardo de huiro, com um alto-falante portátil sobre suas pernas tocando um trap chiante. Embora o valor da alga tenha baixado dois terços em poucos meses, de um dólar e meio para apenas meio dólar o quilo, Marcos não reclama. Ele até sente um certo alívio por não haver tantos coletores clandestinos na ilha, como quando o preço estava no auge. “Em dezembro, estava cheio de lanchas. Da costa, víamos como se metiam no mar para cortar os huiros, mas não podíamos fazer nada”, relata.

“A ilha é abençoada”, acrescenta. Marcos costuma lançar essas frases curtas e profundas que não parecem se encaixar ao trap que está ouvindo. Hoje é um dia que exemplifica o que diz. Há vento forte e ondas. O que para os demais pescadores é mau tempo, para os coletores de algas é uma benção. Com as ondas, os huiros maiores se soltam das florestas subaquáticas e chegam flutuando até a costa. Hoje há tanto huiro na praia que faltam mãos. De fato, o grupo formado por Marcos e mais seis pessoas sabe que não vai conseguir recolher tudo e que à tarde o mar levará o huiro de volta. O mar dá e o mar tira.

O trabalho dos coletores da Ilha Santa María, na costa do Deserto do Atacama, começa às 7 horas da manhã. Cruzam de caiaque até a ilha e, em seguida, caminham cerca de meia hora até os varadouros de huiro: pequenas baías onde encalha a preciosa alga, razão pela qual foram viver nesse ponto do mapa, onde não havia nada mais do que pedra, vento salino e lagartos.

Mapa Chile

A maioria chegou há mais de 10 anos e acabou ficando. O local onde moram fica bem em frente à Ilha Santa María e já é um povoado de cerca de 40 casas de madeira. Ali abundam cachorros, ninguém usa protetor solar e quase todos, inclusive as crianças, são exímios nadadores e remadores. Os cães não foram trazidos por eles, ao menos a maioria. Seus donos os descartam de uma cidade próxima, Antofagasta. "No final, acabamos adotando, não podemos deixá-los morrer", diz Leandra Maluenda, coletora e parceira de Marcos.

O povoado onde Leandra e Marcos vivem se chama Caleta Errázuriz e ali a maioria dos coletores de algas é mulher. Por isso, quase sempre a presidência da associação tem ficado a cargo de uma mulher e isso levou o povoado a ser conhecido como "a caleta das matriarcas" (ou enseada das matriarcas, em português).

A primeira a chegar foi Carmen Castillo, que se instalou com uma barraca. Hoje, a filha de Carmen, Samira, é a presidente da associação de coletores.

Samira tem a pele bronzeada e se move com agilidade pela praia, apesar da gravidez avançada. Embora não esteja trabalhando no huiro, participa de reuniões com autoridades. Diz que gostaria que o Estado lhes entregasse uma área de manejo para que pudessem trabalhar com mais tranquilidade, que as autoridades e alguns acadêmicos às vezes as tratam como predadoras, pois se dedicam ao huiro, e que elas, mais do que ninguém, estão interessadas em conservar o recurso: "Quando arrebentam, demora para crescer e ficamos sem huiro por muito tempo... como podemos querer que se acabe, se vivemos disso".

Algas en Chile
A exploração de algas no norte chileno é cheia de sombras. Em áreas abertas e de livre acesso, é permitida apenas a coleta da alga que chega flutuando até a margem. Mas quando os preços estão altos no mercado, é comum os coletores clandestinos entrarem nas mesmas florestas para "arrebentar".

As sombras da exploração

A exploração de algas no norte chileno é cheia de sombras. Em áreas abertas e de livre acesso (ou seja, que não estão nas mãos de alguma organização de pescadores), é permitida apenas a coleta da alga que chega flutuando até a margem. Mas quando os preços estão altos no mercado, é comum os coletores clandestinos entrarem nas mesmas florestas para "arrebentar". Essa técnica consiste em cortar a alga do seu disco, que é a parte do huiro que fica grudada na rocha. Foi o que viram os habitantes de Caleta Errázuriz em dezembro de 2022, quando o valor do quilo atingiu seu recorde histórico - quase dois dólares - devido à alta demanda, principalmente da China. Barcos suspeitos chegaram às florestas para arrebentar, enquanto caminhonetes 4x4 os esperavam na costa. “Chamamos os fuzileiros navais para vir fiscalizá-los, mas não vieram”, conta Samira.

Extração com barreta

Algas infografía
Algas infografía

Em média, o Chile, que está entre os 10 maiores países exportadores de alga, coleta cerca de 300 mil toneladas de huiro ao ano. E 90% do total é exportado - a China é o principal comprador - na forma de alga seca e triturada, enquanto 10% é usada no Chile para produzir alginato em uma indústria local.

Segundo os dados do Serviço Nacional de Pesca do Chile (Sernapesca), enquanto em 2018 o valor máximo do huiro chegou a 400 pesos chilenos o quilo, o equivalente a meio dólar, em 2022 o valor máximo foi de $ 1.500, quase dois dólares.

As apreensões de huiro extraído ilegalmente também aumentaram nos últimos anos. Enquanto em 2020 foram confiscadas 467 toneladas, em 2022, ano do preço recorde, foram apreendidas 531 toneladas.

No Chile, em teoria, nem todos podem coletar huiro. Há um número determinado de licenças (6.300) emitidas pelo Sernapesca. E essas pessoas têm uma cota mensal de coleta que depende da área (cerca de quatro toneladas). Por isso, uma das formas de legalizar o huiro ocorre pagando um coletor que não tenha atingido sua cota ou por meio de licenças de coleta em desuso, visto que o registro se encontra desatualizado.

Há também outras formas de legalização, por exemplo, as empresas recebem declarações por huiro úmido. Uma vez seco, ficam com uma margem para "preencher" com o huiro ilegal.

O Sernapesca assegura que aumentaram as ações judiciais (de 62 em 2020 para 146 em 2022) contra as empresas suspeitas de tráfico de huiro e que ainda criou um programa especial de fiscalização de algas pardas no norte do Chile, mas funcionários do mesmo Serviço explicam que são poucos para a extensa costa que precisam fiscalizar. Entre Arica e Coquimbo, a região do norte chileno de onde se extrai o huiro, há 1.500 quilômetros, a mesma distância entre Barcelona e Berlim ou entre a Cidade do Panamá e Tegucigalpa.

Entre as empresas multadas há algumas que se repetem, como Algas Limarí, com 15 citações; Exportações M2, com 6; e Comercial y Exportações M2, também com 6.

Paradoxalmente, o representante legal de Exportações M2, Jorge Moreno Bustos, faz parte do comitê de manejo de algas pardas de Coquimbo, que assessora a autoridade a respeito da exploração deste recurso.

Outro nome presente entre as empresas multadas é o da Alimex S.A., da holding Multiexport, a mesma empresa que liderou a exploração de algas no Peru, mas faliu naquele país.

A extração ilegal não é a única sombra no negócio. Na cadeia produtiva, há poucos compradores e, portanto, escassa competitividade de preços. O coletor, para tirar a mínima parte, deve trabalhar sob o sol do deserto, com alta radiação, em áreas isoladas, sem água doce, a maior parte do tempo molhado e resistir à correnteza das ondas, que é a mesma que arrasta o huiro até a costa. Um extrativismo coberto de precariedade, que abastece importantes mercados globais e que exercem à distância sua pressão sobre o recurso.

A demanda por alginato

Os huiros são longos chicotes de dois a quatro metros, unidos por um disco que os coletores chamam de “cabeça”. Só a cabeça molhada pode pesar cerca de 10 quilos. “Essas cabeças são um presente do mar, mas também são bem pesadas”, diz Karen Valeriano, a última mulher a se unir ao grupo de coletores de Caleta Errázuriz.

Karen é boliviana, “uma boliviana com mar”, como gosta de dizer. Ela veio trabalhar em Antofagasta com o seu companheiro há cinco anos, mas hoje está separada. Tem duas filhas.

Antes de chegar ao Chile, não conhecia o mar. E antes de trabalhar em Caleta Errázuriz, não sabia remar nem nadar. Agora conhece o mar e sabe remar, mas não nadar. Todas as manhãs cruza até a ilha de caiaque e seus companheiros a observam para ajudá-la, caso lhe aconteça algum contratempo, como seu barco ser arrastado ao mar pelo vento. “É uma academia gratuita, sem treinador, mas se exercita tudo: costas, braços, glúteos”, diz.

O huiro coletado toda manhã é estendido na praia. Se não fosse estendido, apodreceria e se perderia. Em cerca de três dias já está seco o suficiente para ser amarrado e formar fardos. Em seguida, arrastam esses fardos até o lado da ilha onde os barcos podem entrar. Quem transporta esses fardos nos barcos da ilha até a enseada cobra um valor por isso. Depois, o huiro é vendido aos transportadores que o levam às trituradoras. E das trituradoras é vendido às exportadoras. As exportadoras são poucas e ficam com a maior parte do dinheiro.

As empresas na China convertem o huiro em alginato, um produto espessante usado na indústria alimentícia, em medicamentos, cosméticos e até na mineração.

“Consumimos alginato desde a hora que levantamos e colocamos shampoo no chuveiro, até quando tomamos uma cerveja à noite”, diz Julio Vásquez, biólogo marinho e pesquisador da Universidade Católica do Norte, que tem sido chamado de “o evangelizador do huiro”.

Vásquez acrescenta que poucos sabem da importância das algas na vida diária ou de todo o esforço por trás da textura de um bálsamo para o cabelo, mas se as florestas de algas são depredadas, isso acabará afetando não só as mesmas algas, mas outras espécies marinhas. “As florestas de algas são refúgio, alimento, áreas de proteção e de desova de muitos moluscos, peixes e crustáceos; são como edifícios para os humanos, e se você as destruir, deixará todos os moradores sem casa”, explica.

Sobre o que deveria ser feito para proteger as florestas marinhas, Vásquez explica que, em sua experiência, o manejo sustentável funciona melhor nas áreas de manejo. Ou seja, nas áreas cedidas em concessão a associações de pescadores onde eles mesmos cuidam de seus recursos, evitando a superexploração. No Chile, essas áreas já existem e é justamente nelas onde há menos superexploração. “Assim, é possível extrair de forma ordenada. Por exemplo, recomendamos aos pescadores que extraiam uma planta de huiro a cada três, para deixar um espaço para os novos exemplares e, assim, a floresta vai se renovando”, explica.

Vásquez acredita que, como país, o Chile deve prestar mais atenção aos níveis atuais de extração e estabelecer o quanto de huiro quer exportar, sobretudo porque há fenômenos como o El Niño que, se coincidirem com os níveis atuais de extração, “podem nos deixar sem huiro por muito tempo ”. A isso se soma o grande desafio das mudanças climáticas.

Reflorestar o mar

Uma das propostas surgidas da ciência é o repovoamento com algas pardas para ajudar na recuperação das florestas marinhas depredadas. A iniciativa trabalha com uma solução baseada na natureza, pois usa algas que, de maneira natural, se combinaram com outras variantes da mesma espécie (quimeras). Essa associatividade as torna mais resistentes às mudanças climáticas, às ondas e poderiam até ser capazes de gerar mais biomassa. Algo como superalgas.

Algas quimericas

A doutora Alejandra González, do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade do Chile, lidera este projeto que, após anos de estudo e domesticação do cultivo de algas "quimera" com sua equipe e quatro sindicatos de pescadores artesanais, em 2022 começou a plantar essas algas nas áreas de manejo pertencentes aos sindicatos, em um processo colaborativo. Mas, para isso, primeiro tiveram de ganhar a confiança dos pescadores: “Foi um trabalho longo porque às vezes a academia entra nas comunidades sem torná-las parte, mas nesse projeto elas fazem parte dele e têm nos ajudado muito com seu conhecimento de campo para saber onde é melhor plantar”.

E plantar não é fácil. O huiro cresce em áreas de altas ondas e é justamente isso que lhe confere a característica que o torna tão desejável. "Ao crescer nessas correntes, estas algas produzem mais alginato, porque o alginato é o que permite essa elasticidade que lhe dá resistência às ondas", explica a doutora González.

Quimera algas e ciclo de reprodução de algas

As algas quiméricas apresentam uma maior taxa de sobrevivência, crescimento e tolerância a aumentos de temperatura e salinidade, o que as torna uma opção para repovoar áreas altamente impactadas pela superexploração e, inclusive, são uma alternativa ao aquecimento global.

Algas quimera

A fusão pode ocorrer entre células de zigotos, discos ou entre células de discos e zigotos.


Raúl Julio é presidente de uma associação de pescadores em Totoralillo Norte, uma enseada localizada na região de Coquimbo, no norte do Chile. Nos últimos anos, observaram com preocupação que, onde os huiros desapareciam, outras espécies, como os mariscos, também sumiam. Além disso, as ondas se tornaram mais intensas.

Quando o grupo da doutora González chegou à sua enseada, reconhece que não estavam muito convencidos a recebê-lo. “Eles foram se apresentando, se reunindo conosco, afirmaram que queriam somar o conhecimento científico com o conhecimento local e foi aí que começamos a participar de suas oficinas”, lembra Julio.

Quatro meses após plantar os primeiros huiros, que foram presos às rochas com velcro para resistirem às ondas intensas, Julio explica que ao menos 50% deles sobreviveram. "Queremos continuar trabalhando com os cientistas, porque gostaríamos no futuro de poder fazer agricultura com as algas. Isso porque, como pescadores, também temos de nos encarregar de cultivar e colher, para não sermos apenas predadores”.

  • “Quando arrebentam, demora para crescer e ficamos sem huiro por muito tempo... como podemos querer que se acabe, se vivemos disso”

    Samira

  • “Consumimos alginato desde a hora que levantamos e colocamos shampoo no chuveiro, até quando tomamos uma cerveja à noite”

    JULIO VÁSQUEZ, Pesquisador da Universidade Católica do Norte

  • “As florestas de algas são refúgio, alimento, áreas de proteção e de desova de muitos moluscos, peixes e crustáceos; são como edifícios para os humanos, e se você as destruir, deixará todos os moradores sem casa”

    JULIO VÁSQUEZ, Pesquisador da Universidade Católica do Norte

  • “Assim, é possível extrair de forma ordenada. Por exemplo, recomendamos aos pescadores que extraiam uma planta de huiro a cada três, para deixar um espaço para os novos exemplares e, assim, a floresta vai se renovando”

    JULIO VÁSQUEZ, Pesquisador da Universidade Católica do Norte

Os dois lados da mesma tragédia

Peru e Chile

A exportação de algas do Chile e Peru para a China dobrou depois da pós-pandemia. Isso levou milhares de pessoas a formar cidades costeiras atraídas pela nova “febre marrom”.

PUBLICADO: 25-maio-2023