Publicado: 12-nov-2023
Colombia

O prato paisa e o sancocho em perigo?

Autor: María Clara Valencia Mosquera

Platillos tradicionales

Estes emblemáticos pratos colombianos podem sofrer as consequências da mudança climática e do abandono rural até desaparecer


Às seis da manhã, Nydia Zoraida Caro acende seu fogão. Quando lhe encomendam sancochos de galinha em seu negócio de cozinha tradicional, enche a panela de água e mistura carne branca, milho, mandioquinha e batata. Os condimentos da sua horta complementam o prato.

Desde criança, Nydia, de origem rural, está ligada à terra, às hortas e ao fogão a lenha que ainda utiliza para preservar a tradição gastronômica aprendida com seus pais em Ramiriquí, um município situado a 145 quilômetros ao norte de Bogotá, nas montanhas dos Andes colombianos. Além dos sancochos, sua cozinha produz diversas sopas com milho amarelo e branco, guarapos (bebida fermentada feita com cana-de-açúcar e milho), coladas (pudim de maisena com leite e canela)... E quando tocam as melodias do festival internacional do milho de Ramiriquí, celebrado todo mês de julho, Nydia destaca a riqueza culinária da sua cozinha e da sua região.

Quem entende de cozinha, como ela, sabe que para preparar um sancocho é preciso subir à montanha para colher batatas e apanhar cebolas, coentro e salsa. Além disso, deve se aventurar em terras quentes para obter bananas-verdes. Nesse mesmo terreno, coletam mandiocas, cortam-nas e as descascam antes de adicioná-las à panela. Em um sancocho se refletem todos os solos térmicos do país.

No entanto, esta deliciosa tradição está em perigo. As mudanças de temperatura e os padrões irregulares de chuva ameaçam reduzir a disponibilidade de ingredientes provenientes das montanhas.

Que tal uma bandeija paisa?

Arroz branco, feijão, banana, arepa de milho e proteína animal, geralmente de porco. É uma comida típica colombiana, mas está se tornando cada vez mais internacional. Não necessariamente porque seja apreciada no mundo todo, mas porque depende cada vez mais das importações devido às mudanças climáticas e ao abandono histórico do campo, fatores que ameaçam as receitas mais tradicionais dessa nação mega diversa.

Em 2018, por exemplo, estimou-se que as perdas do setor agrícola devido à variabilidade climática e a eventos extremos chegaram a 168 bilhões de pesos colombianos anuais (cerca de 41 milhões de dólares no câmbio atual). Segundo o documento ‘Agricultura Colombiana: adaptação à mudança climática’, do Centro Internacional de Agricultura Tropical (CIAT), “na última década, as variações climáticas relacionadas aos fenômenos El Niño e La Niña trouxeram sérios desafios para a agricultura colombiana, demonstrando que muitos agricultores não têm capacidade de gerir eficazmente o risco e se adaptar às flutuações climáticas e catástrofes”.

O fenômeno El Niño, geralmente associado à diminuição das chuvas em relação à média mensal histórica e ao aumento das temperaturas do ar, especialmente nas regiões do Caribe e Andina, significou perdas para a Colômbia de cerca de 2,064 milhões de dólares entre 1997 e 2016. Para o segundo semestre de 2023, a situação poderia piorar, pois sua chegada está novamente prevista.

Além disso, a longo prazo, prevê-se um aumento médio da temperatura anual de 2,5 °C na Colômbia até 2050, e é provável que a precipitação aumente 2,5% em meados do século. Mas em algumas regiões diminuirá. O relatório também observa que “sem uma adaptação acelerada, a mudança climática poderia resultar na degradação do solo e perda de matéria orgânica nas encostas andinas, em inundações nas costas do Caribe e Pacífico, no declínio dos habitats para o café, dos cultivos de frutas, de cacau e banana, alterações na prevalência de pragas e doenças, no derretimento de geleiras e estresse hídrico”.


Diferenças na temperatura e precipitação média anual no período 2071-2100 em relação ao período de referência 1976-2005

Os cenários de mudança climática de 2011-2100 elaborado pelo IDEAM (IDEAM, et al., 2015) mostram que o país em seu conjunto seria afetado pela mudança climática. No entanto, o aumento esperado na temperatura, assim como o comportamento das precipitações, não serão os mesmos para todas as regiões do país.


Mapa temperatura
Mapa temperatura

Fonte: IDEAM (2015)


As ameaças climáticas

Miguel Durango, líder de uma iniciativa de agricultores no Caribe colombiano, destaca a falta de uma política hídrica abrangente e de uma governança eficaz para enfrentar os riscos. “Estamos de calças arriadas para enfrentar o fenômeno El Niño que está chegando”, diz ele do Caribe. São necessários aquedutos comunitários e a gestão da água para poder enfrentar as secas. Precisamos de sistemas de irrigação e drenagem”.

Uma situação que põe em risco um dos alimentos preferidos do país sul-americano: o feijão. Na Colômbia, são comercializadas mais de 15 variedades dessa leguminosa, todas vulneráveis aos climas extremos. O excesso de chuva e seca afeta sua produção. Em 2022, durante o fenômeno La Niña, muitos agricultores pararam de plantar devido ao excesso de chuvas durante a etapa de crescimento.

Uma situação que se refletiu no comportamento do mercado. Segundo a Federação Nacional dos Produtores de Cereais, Legumes e Soja da Colômbia (FENALCE), em 2022 foram comercializadas 168.711 toneladas de feijão, das quais 53.381 toneladas foram importadas, marcando um aumento nas importações, segundo dados do Ministério da Agricultura.

O fato de não produzirmos alimento, mas que ele seja oferecido por terceiros é uma dependência muito grave e uma vulnerabilidade da segurança alimentar muito arriscada”, diz Henry Vanegas Angarita, gerente da entidade. “Depender das importações é como se o nosso vizinho fizesse o mercado para nós”, acrescenta.

O desafio da produção de feijões na Colômbia se agrava pela falta de tecnologia e pelo impacto constante da mudança climática. Isso, juntamente com o conflito armado interno, os conflitos internacionais e os efeitos da pandemia na importação de insumos agrícolas, contribuiu para o aumento dos preços dos alimentos. Em março de 2023, o preço do feijão-vermelho em Bogotá aumentou 81,84%, refletindo a vulnerabilidade dos produtos nativos que carecem de apoio estatal.

Na Colômbia da bandeija paisa, o feijão é importado porque sua produção nacional está nas mãos dos pequenos agricultores, que produzem 80% do alimento consumido no país. Cultivam-no nos diferentes solos térmicos e, no entanto, não têm apoio técnico nem canais de comercialização que garantam a sua sustentabilidade e, portanto, ante os impactos do clima, não podem semear.

“Até porque muitas vezes não são proprietários de terra e por isso não têm acesso à ajuda”, explica Sonia Gallego, engenheira de alimentos e coordenadora da área de pós-colheita e desenvolvimento de produtos alimentícios do Centro Internacional de Agricultura Tropical (CIAT) e da aliança Biodiversity International.


O milho no DNA colombiano

O milho, um pilar da gastronomia colombiana, vai além da arepa de milho branco na bandeija paisa. Cada região do país tem sua própria versão de arepa, graças à diversidade de milhos existentes. Segundo o antropólogo e professor Luis Vidal, da Universidade de Antioquia, “o milho e o feijão estão no nosso DNA e nos conectam com o território”.

No entanto, os números da Federação Nacional dos Produtores de Cereais, Legumes e Soja (FENALCE) revelam uma dependência preocupante das importações de milho. Em 2022, das 1.064.260 toneladas de milho branco comercializadas na Colômbia, 378.645 foram importadas. Além disso, embora tenham sido produzidas 1.235.563 toneladas de milho amarelo, foram importadas 6.119.648 toneladas desse produto.

O cereal, vulnerável aos fenômenos climáticos extremos como as chuvas, enfrenta um futuro desafiador. Segundo um estudo do CIAT e da Biodiversity International, são esperadas reduções na produtividade do milho em todas as regiões produtoras de milho do país devido à mudança climática. A variabilidade das temperaturas e precipitação afeta negativamente o crescimento e a produtividade do cultivo.

Até 2050, prevê-se que as áreas adequadas para a produção de milho sofram mudanças significativas de temperatura, o que poderia reduzir a produtividade em até 30% em 2030, diz o estudo. Essas ameaças também poderiam aumentar a dependência das importações de milho dos Estados Unidos, que, paradoxalmente, esperam um aumento na produtividade devido à mudança climática.

Mas é preciso considerar também que o milho não é apenas essencial para a alimentação humana, mas também desempenha um papel fundamental na alimentação animal, afetando indiretamente a carne de frango, porco e outras fontes de proteína antes de chegar às nossas mesas. A vulnerabilidade do milho poderia gerar um efeito dominó negativo na segurança alimentar e nas cadeias de abastecimento.

Os desafios da banana

Se a esta altura pensamos que o essencial está ameaçado, temos de olhar para a banana, que enfrenta desafios devido ao aumento das chuvas, que tem provocado um aumento significativo dos preços e dificuldades de acesso para muitas famílias. Essa fruta desempenha um papel crucial na segurança alimentar dos colombianos ao fazer parte da cesta básica familiar. No entanto, em 2022, a Colômbia experimentou uma inflação de alimentos de 29%, com a banana liderando o aumento de preços, seguida pelo frango.

No âmbito mundial, a Colômbia ocupa o quinto lugar como produtor de banana. Embora a produtividade média por hectare tenha aumentado nos últimos anos, chegando a 8,3 toneladas por hectare em 2019, ante 7,3 toneladas por hectare em 2007, registou-se uma diminuição das áreas plantadas e na produção em 2018 devido às condições climáticas adversas em diversas regiões do país.

A batata, cada vez mais acima

Falemos da batata... Seus cultivos (e de muitos tubérculos) estão escalando cada vez mais as montanhas devido ao aumento da temperatura. Chegaram até a altura das charnecas, reservatórios de água que fornecem 70% desse líquido no país e que deveriam permanecer intactos para garantir a umidade dos alimentos. Mas estes ecossistemas se reduzem cada vez mais por causa dos cultivos. Se os tubérculos continuarem subindo, em breve não sobrará água para plantá-los nem para o consumo no restante do país.

Segundo dados do Instituto de Hidrologia, Meteorologia e Estudos Ambientais (IDEAM), as projeções climáticas indicam um aumento da temperatura média em algumas regiões produtoras de batata, com variação de 0,51 a 1°C para o período 2011-2040. Além disso, prevê-se um aumento de 2,5 °C em 2030 e de 2,9 °C em 2050 nas regiões de produção de batata, principalmente no departamento de Cundinamarca, no coração da Colômbia.

Essa mudança climática se traduz em menor produtividade dos cultivos de batata, ainda mais impactada por padrões irregulares de precipitação, incluindo chuvas concentradas e longos períodos de seca. No departamento de Cundinamarca, prevê-se uma diminuição da produtividade na próxima década, com perdas que variam entre 5% e 35%, em comparação com o período 2000-2010.

Além disso, prevê-se um aumento de pragas e doenças nas culturas desse tubérculo em regiões localizadas abaixo de 2.500 metros acima do nível do mar. A essas preocupações se soma o risco do fenômeno El Niño, que poderia desencadear estresse hídrico nos cultivos, reduzindo ainda mais sua produtividade.

Os pequenos produtores, que constituem 45% da produção nacional, são especialmente vulneráveis devido à sua limitada capacidade de adaptação. “Em geral, as perspectivas para a batata na Colômbia não são animadoras. Projetam-se perdas de produtividade nas grandes áreas produtoras e uma migração da aptidão ecológica do cultivo para zonas de elevada relevância ambiental, como as charnecas”, conclui o estudo.

Defender o Alimento

Diante desse panorama, é imperativa a atuação de distintos setores para buscar uma adaptação efetiva aos novos cenários climáticos. Desde 2018, a Colômbia oficializou as mesas agroclimáticas em seus departamentos, uma colaboração entre acadêmicos, governo e sindicatos de produtores. Segundo Yenny Fernanda Urrego, engenheira agrônoma e professora da Universidade de Tolima, essas mesas se reúnem mensalmente para analisar as previsões climáticas, incluindo fenômenos como El Niño e La Niña. A partir dessas reuniões é gerado o boletim Agroclimático, distribuído em diversos meios para que os agricultores possam tomar decisões com base nas informações para proteger seus cultivos.

Mas a medida não é suficiente, pois esses boletins não chegam a todos os agricultores, especialmente àqueles em áreas remotas que podem ser os que mais necessitam de apoio.

Os especialistas sugerem que uma estratégia mais eficaz para enfrentar esta problemática reside na rica biodiversidade da Colômbia, uma vez que a Colômbia é o segundo país com a maior biodiversidade do mundo.

Nesse sentido, um exemplo de sucesso se encontra em Montes de María, no Caribe colombiano. No município de Tolúviejo, a meia hora de Sincelejo, capital do departamento de Sucre, a associação rural Asocomán estabeleceu pequenos pátios com mais de 20 espécies comestíveis, que proporcionam uma alimentação saudável e geram renda para 24 famílias associadas.

Esse modelo sustentável foi criado graças a uma iniciativa da United States Agency For International Development (USAID), que procurava fornecer alternativas econômicas aos agricultores enquanto protegia a floresta. Os agricultores aprenderam a tirar proveito de cada fruta, cuidar do entorno, calcular custos de produção e ter acesso a mercados justos. Antes, muitas frutas eram desperdiçadas porque não tinham para quem vendê-las. Hoje, em aliança com mais de 20 restaurantes em todo o país, estabeleceram um processo 100% sustentável.

Os restaurantes participantes elaboram seus menus baseados na disponibilidade de produtos da associação, não o contrário, e organizam festivais para aproveitar as colheitas excedentes.

Jaime Rodríguez, fundador do restaurante Celele, em Cartagena, explica que esse projeto paga aos agricultores para colher alimentos e assim valorizar o que há no ecossistema e evitar o corte de árvores e cultivos que poderiam ser afetados pelas variações climáticas. Essa abordagem levou a criações culinárias únicas, como saladas de flores do Caribe e pudim de orejero (pasta feita com sementes de Guanacaste cozidas), que não são apenas deliciosas, mas também utilizam produtos locais.

O principal desafio é a adaptação. Estão explorando quais cultivos podem recuperar os solos e quais são resistentes às secas e chuvas intensas. Além disso, estão recuperando sementes nativas que permitem adaptar o solo de forma agroecológica.

Miguel Durango, agrônomo e líder do projeto, destaca a importância dessa iniciativa ser sustentável em termos ambientais, sociais e econômicos. Hoje, só de banana, são produzidas nesses pátios mais de 16 variedades e, no caso da manga, somam cerca de 36.

Um bunker para a biodiversidade

Em um mundo onde a mudança climática ameaça a segurança alimentar, a Colômbia tornou-se, por sua vez, um refúgio de diversidade agrícola vital. Nesse país se encontra um dos 15 bancos de germoplasma, conhecido como ‘Sementes do Futuro’, que abriga um impressionante acervo de mais de 67 mil variedades de feijão, mandioca e forragem tropicais, com mais de 36 mil tipos de feijão.

Ali se protege a diversidade genética de espécies vegetais fundamentais para a agricultura e alimentação, muitas das quais apresentam características de resistência a temperaturas extremas, secas e inundações. A mandioca, por exemplo, é uma cultura resiliente e essencial para agricultores com recursos limitados que não conseguem fertilizar suas terras.

O feijão, por sua vez, é importante por sua diversidade e seu papel como alimento básico em muitas dietas. À medida que a agricultura se industrializou no século passado, foram priorizadas variedades de alta produtividade, levando à perda de diversidade.

O banco 'Sementes do Futuro', administrado pelo Centro Internacional de Agricultura Tropical (CIAT) e pela Aliança da Bioversity Internacional, se encontra na cidade de Palmira, perto de Cali, no Pacífico colombiano.

Paradoxalmente, essa proteção veio institucionalizar uma tarefa que os agricultores e indígenas têm exercido desde tempos remotos, mas que até hoje nos parece importante.

“As comunidades rurais preservaram a diversidade e devemos manter isso. Será a solução quando a situação se tornar crítica”, diz Eduardo Martínez, agrônomo e proprietário do renomado restaurante Minimal, em Bogotá, que lidera em seu restaurante um processo de produção de alimentos ambiental, social e economicamente sustentável, com comunidades amazônicas do Pacífico colombiano.

Hoje, mais do que nunca, a situação exige que recuperemos nossas práticas comunitárias e ancestrais de mãos dadas com o conhecimento científico e a política pública para nos adaptarmos à nova realidade climática.


Pensando sob a chuva

Carlos Toto Sánchez, pesquisador gastronômico e professor da Universidade de la Sabana, destaca que a perda de soberania e segurança alimentar equivale a uma perda da identidade e, com isso, da cultura.

A relação intrínseca entre território e alimentação faz parte da nossa essência. A comida não só nutre o nosso corpo, mas também educa, regula as relações humanas e promove a comunidade, uma vez que a maioria dos nossos pratos tradicionais é concebido para ser partilhado, não para ser consumido sozinho. Como destaca Sánchez, “o alimento é um pilar fundamental da cultura de qualquer comunidade e está intimamente ligado ao seu território e à sua história. Portanto, perder um produto é perder parte da identidade e da história”.

Luis Vidal complementa esse ponto, explicando como o alimento tradicional se conecta à paisagem circundante e às nossas raízes culturais. A tradição de consumir “um claro de milho” (uma preparação líquida) em uma “totuma” destaca a importância do vínculo com as gerações passadas e nossa história: “Através do milho nos integramos com o território”, diz o antropólogo e professor da Universidade de Antioquia.

A mudança climática tem desorientado os agricultores, que enfrentam mudanças imprevisíveis nos padrões de chuva e outros eventos climáticos extremos. Como resultado, muitos estão abandonando a agricultura. Vidal destaca que “mudamos o clima e os ciclos de reprodução dos animais, as florações e a polinização por insetos. Mudamos o clima e ele acabou nos mudando”.